13 de nov. de 2009

Obrigado, Bento XVI

autor: Rev. Carlos Eduardo Brandão Calvani
Presbítero (padre) da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil
Doutor em Teologia

Conforme um dito popular, “Deus escreve por linhas tortas”. Nunca parei para refletir mais profundamente sobre esse ditado. Mas sempre o escuto e, provavelmente, também já devo tê-lo repetido uma ou outra vez na vida.

Devo confessar que, nos últimos dias, esse ditado reapareceu em minha memória, por conta de todas as discussões sobre a mais recente artimanha do Vaticano, de criar uma provisão especial para receber na Igreja Romana anglicanos dissidentes e insatisfeitos. Graças a Deus nunca fui católico-romano e não tenho qualquer compromisso de ser bem educado para com Ratzinger - sempre o considerei um (mesmo antes de ser Papa), um teólogo “torto”, mais preocupado com a restauração do passado do que propriamente com a construção do futuro. Mas Deus, em sua insondável sabedoria, pode até mesmo usar caminhos tortos. Lá no Antigo Testamento, até uma mula (ou jumento) poderia ser porta-voz dos desígnios divinos...

Sei que, ao escrever isto, correrei o risco de ouvir de alguns colegas: “você precisa ser mais polido... você ofendeu o papa...”. A estes eu respondo: “onde está nossa auto-estima? vamos continuar oferecendo a outra face e quantas partes mais do corpo quiserem para nos agredir? Que masoquismo eclesiástico é este?” Bem mais ofendidos ficaram muitos anglicanos, inicialmente. Alguns anglicanos como eu, também já ficaram bastante constrangidos em reuniões ecumênicas (participei durante um tempo da Comissão Teológica do CONIC) e poderia citar, se o espaço fosse maior, exemplos do constrangimento pelo qual passamos diante do peso e da pressão da Igreja Católica Romana para que aprovemos aquilo que interessa a eles.

Agora, em 2010 teremos Campanha da Fraternidade “Ecumênica”. Confesso que, particularmente, não tenho qualquer interesse em colaborar ou participar de uma campanha em que as demais igrejas (pequenas, coitadinhas), são usadas para render frutos à Igreja Católica Romana. Gostaria de saber mesmo, quando é que a organização da “Campanha da Fraternidade Ecumênica” apoiará e defenderá uma proposta feita por mim mesmo, de que um dos temas mais urgentes a tratar, nacionalmente, é a questão da pedofilia. Quando eu disse isso, em reunião da Comissão Teológica do CONIC, fui ignorado. A única reação que percebi foram alguns sorrisos desconfortáveis, como se eu estivesse querendo ironizar ou cutucar onça com vara curta... Minha proposta sequer foi discutida. Depois alguns padres amigos me disseram: “A Igreja Romana nunca irá abordar esse tema...” 

Li o texto oficial do Vaticano, ouvi e li também algumas opiniões e cheguei até mesmo a provocar o querido colega Rev. Luiz Alberto Barbosa, secretário-executivo do CONIC, para saber se esse organismo iria emitir algum pronunciamento condenando a medida. Hoje, porém, dou meu braço a torcer e minha mão à palmatória, porque estou chegando à conclusão que a jogada política do Vaticano, apesar de ser um golpe baixo (digno de seus redatores) e que põe ainda mais cimento no caixão do falecido ecumenismo institucional, pode ser encarado como uma provisão abençoada para a Comunhão Anglicana.

Um querido bispo da IEAB enviou-me um email dias atrás, lembrando que vivemos o primado da perversão em todos os segmentos, e que mesmo as igrejas não escapam disso. As atuações perversas, diz ele, estão sempre escondidas por traz do biombo de belas palavras, versículos bíblicos e citações de teólogos antigos. E a utilização desses recursos pelos perversos, lhes proporciona um gozo imenso.

Lembrei-me também de um pequeno poema, do extraordinário poeta português Guerra Junqueiro (1850-1923). Embora dirigido, especificamente aos jesuítas, pode aplicar-se também a outros que, mesmo não sendo jesuítas, se identifiquem com o atual papado:

Ó Jesuítas, vós sois dum faro tão astuto 
Tendes tal corrupção e tal velhacaria 
Que é incrível até que o filho de Maria 
Não seja inda velhaco e não seja corrupto 
Andando a tanto tempo em tão má companhia

Pelo que entendi da “Constituição Apostólica Anglicanorum Coetibus” (este é o pomposo nome oficial), a Igreja Romana está abrindo as portas para receber diáconos, presbíteros ou bispos anglicanos “como candidatos às sagradas ordens na Igreja Católica”. Ou seja, os anglicanos que debandarem para lá, não terão suas ordens reconhecidas e deverão ser “reordenados”. Os que forem casados devem observar algumas normas da época de Paulo VI, enquanto os não-casados devem ater-se ao celibato. Mais à frente, o documento diz: “o ordinário... admitirá somente homens celibatários à ordem do presbiterado”. 

A situação mais cômoda é para os padres que foram ordenados na Igreja Católica Romana e que foram recebidos (sem reordenação) na Igreja Anglicana. Esses, se forem celibatários, podem voltar e serão recebidos como “filhos pródigos”. Se forem casados, porém, a situação será um pouco mais complicada, mas ainda assim terão seu espaço garantido junto ao trono de São Pedro para comer das migalhas que caem da mesa papal.

Mas, no frigir dos ovos, a provisão do Vaticano se transformará em uma bênção para a Comunhão Anglicana. A ela atenderão os clérigos e bispos com vocação inquisitorial, que sentem cheiro de heresia em qualquer palavra ou em qualquer texto; a ela atenderão os clérigos e bispos machistas, que não suportam ver uma mulher de batina; a ela atenderão os romanistas disfarçados, que sempre reclamam o fato de as igrejas da Comunhão Anglicana não terem uma autoridade central, mas uma autoridade dispersa; a ela atenderão os recalcados que desconfiam de qualquer ação pastoral que contrarie os cânones da ética sexual romana.

Estes, que atenderão à oferta do Vaticano, realmente não se sentem confortáveis nas igrejas da Comunhão Anglicana. Parodiando a 1ª epístola de João, eu diria - “estes saíram do meio de nós, mas não eram dos nossos. Se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco”.

Por isso, tudo, devemos agradecer a Bento XVI e a seus assessores, pelo bem que proporcionaram à Comunhão Anglicana.

Que Deus lhes retribua em porções dobradas todo o bem que nos fizeram.
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Publicado com autorização do autor.
Concordo com tudinho que está aí escrito. Gostaria de ter escrito este texto e agradeço ao Rev. Calvani a permissão para colocar este artigo no meu modesto blog. 

Arreda Bento! xô! Tá amarrado! xô!
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11 comentários:

  1. OI Caetano, grato por publicar.
    Já adicionei seu blog aos meus favoritos.
    abraços
    calvani

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  2. Eu não sou Anglicano, e fiquei indignado com a atitude do "décimo sexto", que atende pela alcunha de Ratzing. Imagine um Reverendo Anglicano, então.
    Conhecendo o Calvani como conheço, sei que isto está inquietando-lhe por demais, e não é para menos. O Ratzing foi muito infeliz nessa atitude esdrúxula e atrapalhada. Não é de se admirar que ele não consiga agradar os verdadeiros Cristãos inseridos no bojo da igreja católica, POIS AO CONTRÁRIO DELE (RATZING), ESTES TÊM CARÁTER.
    Querido Amigo, Professor e Reverendo Caetano, eu também concordo com tudo o que disse o Professor, Reverendo Carlos Calvani, e me solidarizo com vocês dois e os demais Anglicanos apaixonados por sua Igreja.
    Um grande abraço, Deus o Abençoe e a todos os Anglicanos. Principalmente aos que estão indignados, pois isso é demonstração de caráter e bom senso. Caráter e bom senso são virtudes que sei, não faltam em você e no Calvani.

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  3. Parabéns, Rev. Calvani pela lucidez e mestria com as palavras; a provisão romana é a visão pró Roma !!!
    Amo minha igreja, naquilo que nela há de liberdade e Visão, mística e alegria, arte e beleza.. sem condicionar as santas ordens ao celibato, sem condicionar gênero ao sagrado direito de celebrar a missa; sem restringir o acesso ao sacramento da eucaristia ao não-anglicanos.
    Daqui lanço um desafio pastorial a igreja de Cristo: CAMPANHA PASTORAL ANGLICANA 2010: PEDOFILIA NÃO; BASTA DE VIOLÊNCIA CONTRA AS CRIANÇAS E OS ADOLESCENTES. Teremos bons parceiros e acompanhantes nesse desafio...
    (ops)

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  4. O poeta R. Halves tem toda razão. Nada de "campanhas da fraternidade" (des)ecumênicas, onde vai todo mundo a reboque da Roma gloriosa! Vamos fazer a nossa própria campanha. Vamos, por exemplo, colocar na mídia a enorme quantidade de romanos católicos que vieram para nosso curral porque o capim de lá é amargo e espinhoso! Vamos levantar os temas da homofobia, pedofilia, dos Direitos Humanos, uma campanha informando à população brasileira dos Direitos Fundamentais previstos na nossa Constituição, há uma quantidade enorme de temas emergentes que carecem da coragem em testemunhar o Evangelho de Cristo, sem depender dos dogmas romanos.
    Nenhuma Igreja Protestante precisa do aval da Igreja de Roma, nem ir a reboque dela. A maioria das nossas Igrejas surgiu por causa da intolerancia romana. Vivemos 500 anos sem precisar dos romanos... eles precisam de nós, invocam o ecumenismo para manter sua hegemonia.

    Coragem,gente! "Xô Bento! Arreda"

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  5. Por que, então, imediatamente, não "colocar na mídia a enorme quantidade de romanos católicos que vieram para nosso curral porque o capim de lá é amargo e espinhoso! Vamos levantar os temas da homofobia, pedofilia, dos Direitos Humanos..."?
    Repito: por que não imediatamente?

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  6. A questão de colocar na mídia, embora eu me sinta tentado a incentivar isso, é uma atitude anti-ética. Se Roma faz estardalhaço disso, é porque precisa de holofote. Não precisamos disso. Até porque a mídia, aqui no Brasil, tem certos pactos com a Igreja Romana... nunca sai nada contra ela, já repararam?
    Dei a idéia de publicar, é verdade, mas acho que não valeria a pena, não precisamos proceder dessa forma. Embora, diga-se de passagem, algumas pessoas na América do Norte estão fazendo algo parecido. É só olhar no YouTube...

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  7. Lúcido. Completo. Experimentado pela dor de ter de suportar tanta carga, como todos temos de suportar, por estes anos a fio. Calvani, parabéns. Você reteve a coragem de muitos!
    Abração,
    Keila Mattioli Sousa

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  8. Calvani+
    Graça e Paz.
    Gostei do texto, excelente reflexão.
    A um tempo atraz comentavam que nosso presidente falava sem pensar, mas parece que seu Bento está pior, isso que o presidente não tem estudo, e Bento diz ser doutor.
    Realmente, acho que o documento foi um balde de água fria na campanha da fraternidade "ecumênica", acho que é perda de tempo investir nesta campanha, pois se está contribui com algo é com a propaganda da igreja católica romana.
    O ducumneto do vaticano até, no meu ver,teve algo de bom, pois é uma excelente publicidade da Igreja Anglicana e o melhor gratuita. Aqui na região o pessoal comenta o fato de aparecermos na televisão como igreja, pessoas que ainda não conheciam o Arcebispo de Cantuária ficaram conhecendo através da TV, e a partir disso aparecem questões a respeito da Igreja. O interesse por conhecer a igreja até aumentou.

    Abraço

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  9. Excelente texto, especialmente para nós, os poucos anglicanos brasileiros de tendência protestante. Sufocante a ação dos romanistas em nosso meio, agora eles terão a oportunidade de serem mais felizes.

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  10. Pois é Gustavo... mas é uma pena que isso só valeu para a Igreja da Inglaterra... assim, por outras bandas a gente tem de aguentar o romanismo infiltrado... rsrsrsrs
    Olha sou um tanto quanto anglo-católico, mas na verdade sou um protestante que gosta de liturgia e da Tradição!!!
    Tenho pavor de Papas e Hierarquias verticais!
    Abrs.

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  11. OLá Caetano a Professora (Doutoranda) Berenice Guedes deixou esse comentário no Circulo Teológico:

    BERENICE disse...

    Com o coração agradecido a Deus li o corajoso artigo do Rev Calvani e cumprimento Rev Caetano pelo espaço aqui proporcionado para discussões tão importantes e urgentes nesta perversa sociedade globalizada! Parabéns! Penso que faltava à nossa amada Igreja Anglicana pessoas de coragem, definidas, pontuais, que fortificadas pelo Espírito Santo, não ficássem mais "em cima do muro", querendo agradar "gregos e troianos"!
    Sou professora, Doutoranda pela Universidade Federal de Pelotas/RS em História da Educação e Filosofia (incluindo também estudos sobre Movimentos Sociais).
    Apoio integralmente as palavras do Rev Calvani e ratifico que precisamos despertar a coragem "um dia revelada aos santos" para tomar posição e enfrentar o mundo sem medo! A Igreja Anglicana não pode deixar que seu Ethos de Inclusividade seja confundido com servilismo, fraqueza ou timidez! Gostaria que meu comentário chegasse ao Rev Catani (que, infelizmente, não conheço pessoalmente) e ao senhor, Rev Caetano, Parabéns por abrir este espaço! Deus os abençõe!!! Bendita "Fé que vem dos nossos pais!"
    bereniceguedes@ibest.com.br
    PS.: EU TAMBÉM GOSTARIA DE TER ESCRITO ESTE ARTIGO...

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